quinta-feira, 26 de junho de 2014

Leonarda Glück: o transteatro que ela habita

A atriz e diretora de teatro estreou recentemente a peça “Iracema 236ml – O Retorno da Grande Nação Tabajara”

Por Fernanda Brisky (texto e foto)

“O mundo fez de mim uma puta, agora eu faço dele um bordel”. A frase, que parece saída de um romance de Gabriel García Marquez, personifica a transgente. Leonarda Glück, atriz e diretora de teatro, pode ser vista como pessoa que transcende os habituais padrões de sexo e gênero. E foi no teatro que encontrou um modo de buscar seus ideais. “Em época de consumismo, resistência é fundamental”. Não à toa, cultiva práticas que se contrapõem ao consumismo imediato e fútil.

Encara essa aquisição de bens materiais e a banalização do amor ladainhas que conduzem as pessoas distraídas à loucura. 

Ela revela que a brincadeira de se autodenominar puta é referente a estar preparada para qualquer coisa. “O meio está fabricando essas pessoas e temos que estar preparados para tudo”. Alguns a consideram impaciente, ainda que gentilíssima. Há quem a classifique como “240 Volts”, uma mulher elétrica que, sem perceber, acaba desrespeitando o tempo dos outros. Ela prefere dizer que é ágil.

Nascida e criada em Curitiba, Leo, como a chamam os amigos, leva uma vida equilibrada. Explica-se, assim. “Acordo cedo, lavo o rosto com gelo, tomo banho gelado. No inverno é morno! Escovo os dentes, respondo e-mails. Igual a qualquer pessoa em sã consciência”.

Graduada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP), Leonarda encontrou no teatro sua paixão.  Leo é namoradeira, romântica “da última geração”, e chora até em inauguração de supermercado.

Amante da literatura e do cinema, encontra nestas duas expressões artísticas o conhecimento que a completa. Como diretora, nos ensaios procura criar uma atmosfera pacífica e colaborativa, porém exigente.  Além do talento, a transpensante passa uma imagem vibrante, positiva e um tanto sarcástica.  Sobre a sétima arte, diz que Hollywood nunca foi um parâmetro, mas é apaixonada pelo cinema, passando por Almodóvar e Tarantino.

Desde os 14 anos, é intensa no teatro. Foi no auditório Bento Mossurunga, no Colégio Estadual do Paraná, que começou sua vida de atriz. Para ela, a arte e a vida já andam juntas.

Inspirada em romances, dos vários já lidos, comenta que a literatura faz o mundo girar, não separa o que faz do que diz, em cena ou fora dela. É a mesma em várias outras. Conhece-se tão bem em cena que, às vezes, fora dela, não se reconhece.

Semente adulta, estabeleceu-se como uma mulher transexual. Sua militância é nos palcos, e a transexualidade é apenas outra maneira de ser mulher. Leonarda assumiu sua opção sexual aos 24 anos, após concluir a faculdade.

O desconforto pela sua sexualidade vem só das nomenclaturas e formalidades. Encaixou-se nesse gênero a partir do momento que percebeu tudo por contas das experiências intrínsecas, mentais, emocionais e físicas vividas.

Do corpo ela cuida, afinal, é de onde faz, fala, cala e diz. “É nele que eu moro, ele é o seu salão nobre de festas”. Reforma-se à medida que as paredes estão descascando e a pintura vai ficando gasta. O nome é de nascença, à exceção de uma pequena letra de forma arredondada no fim.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Hugo Mengarelli: argentino bem brasileiro

Mengarelli é de poucas palavras, mas elas são suficientes para ter a certeza de que ele é mais brasileiro do que argentino


Por Noele Dornelles (texto e foto)


Sotaque. Essa é a primeira coisa que notamos em Hugo Mengarelli. Há mais de 35 anos morando no Brasil, já domina a língua portuguesa há um bom tempo, mas não quer perder  as raízes argentinas. “Quando vim pra cá, tinha dificuldade, agora eu tento falar com pouco sotaque. Às vezes dá certo”.

Cinema é uma das paixões de Hugo. O seu primeiro filme, ”Roça”, foi lançado em 1984, mas engana-se quem acha que ele foi produzido em 1984. “A gente começou a filmar Roça em 1981, mas tivemos muita dificuldade na produção”. A falta de recursos alongou a estreia do filme, ocorrida na Cinemateca de Curitiba. Um desses momentos marcantes para Hugo foi quando a polícia impediu a equipe de gravar uma cena, “Todo mundo estava pronto, íamos gravar na Rua das Flores, aí de repente quando olhamos lá estava a polícia falando que não podíamos utilizar o espaço”, conta Mengarelli.

Ele pegava pesado com a gente, posso falar: aprendi tudo que sei com ele”. É assim que o ex- aluno e hoje diretor de cinema Cesar Pereira define o ex-professor e colega de profissão. “Hoje eu valorizo tudo que ele me disse e aplico nos meus filmes”.

Às vezes é complicado conviver com o diretor, cineasta e o professor Mengarelli. Essa é umas das constatações feitas por mim ao acompanhar um dia com ele. O filho, Rodrigo Mengarelli, confirma o gênio forte e a tendência a transferir o comportamento profissional para a vida cotidiana. Hugo, às vezes, torna-se autoritário e transpõe seu comportamento profissional para a convivência na família. “Às vezes ele esquece que é pai e fala comigo como diretor. É engraçado quando ele nota isso”.

Para Hugo, teatro é uma profissão complicada nos dias de hoje. “Viver de arte é complicado. Tem atores da companhia que tem outros trabalhos, outras profissões, é assim em vários lugares”. Perguntado sobre um artista do teatro com o qual tem orgulho de ter trabalhado, cita Lala Schneider, a dama do teatro paranaense.

PalavrAção, a companhia, surgiu em 1995, quando um reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) quis criar um grupo para as apresentações. Mengarelli foi escolhido para a direção. “A ideia sempre foi de criar atores, mostrar o nosso trabalho”. Muitos atores passaram pela companhia. Pâmela Machado atuou em várias peças com o diretor.

Antes de me despedir de Mengarelli, perguntei se irá torcer pela Argentina na Copa. “Claro que vou, afinal não é sempre que podemos ganhar uma Copa na casa do maior rival”. Assim terminei meu encontro com Hugo. Ao me despedir dele, ele me diz “merda pra você”, e eu retribuo: “merda pra você”.