sexta-feira, 24 de julho de 2015

O que fazemos com as nossas desgraças


Por Julmara Mendes
Foto: divulgação

No quarto, apenas o som de um teclado de computador e um jovem a digitar nervosamente. Sem qualquer outro aparato de produção, além do pc com conexão à internet e um programa de edição, Arthur Tuoto se dedica à criação de mais um filme. Com um estilo próprio, ele se recusa a seguir um orçamento, formar uma equipe, trabalhar com planilha ou CNPJ. Com apenas 29 anos, Arthur Vicentini Tuoto é artista visual e professor. Mas, além disso é cineasta, com formação técnica na AIC (Academia Internacional de Cinema). Tuoto considera que este é o filme que melhor define o seu trabalho conforme a entrevista publicada no catálogo da Mostra de Tiradentes, na época em que o seu longa estreou naquele local.

O novo filme se chama "Aquilo que fazemos com as nossas desgraças" e o título foi inspirado numa frase da poeta Alejandra Pizarnik que, segundo ele, retrata bem o que é fazer cinema no Brasil: "Foi necessário o computador e uma mediateca infinita no ambiente online à minha disposição, à disposição de qualquer um. O Paraná não lança um edital de cultura voltado ao audiovisual há mais de um ano." Tuoto acha que, de certa forma, esse processo e o próprio título do filme é uma resposta a isso.

Na entrevista, ele resume como produz os seus filmes, especialmente sobre como se serve de imagens e sobre a questão ambígua de autoria que os seus filmes questionam. “O meu processo é sempre o mesmo: a apropriação. A estratégia na abordagem dessa apropriação talvez seja determinada em alguma medida pelo material disponível, por aquilo que eu vou me deparando ao longo do caminho. A essência desse processo reside justamente nesse equilíbrio entre aquilo que eu quero mostrar e o potencial que o material que eu encontro me oferece. É nessa manipulação, nessa negociação, nessa manutenção de certos significados possíveis que o filme acontece".

Quando pergunto se acredita em Deus, ele me responde que não acredita no conceito de Deus, embora tenha uma espiritualidade independente de qualquer religião. Solteiro, não sabe responder se quer ter filhos ou não. Pelo jeito é um apaixonado pelo que faz, pois deseja continuar buscando atingir novas possibilidades na linguagem audiovisual, trabalho esse que já lhe permitiu conhecer países como Portugal, França e Argentina.

Muito simpático e atencioso, Tuoto me recomenda ler um dos textos do seu site, no qual ele conta à uma amiga, de uma de forma divertida, como conheceu a namorada pela internet, por meio de um chat. A amiga é Paula Borghi que acha natural ele ter se encantado pela moça analisando os seus vídeos, embora ele diga nunca ter pensado a respeito.

Num texto bem informal, ele confessa à amiga que roubava internet do vizinho e, na conversa vai respondendo de forma filosófica: "Na verdade eu nunca tinha pensando muito nisso, mas de fato a nossa relação se iniciou ‘virtualmente’, ou ‘digitalmente’, seja por imagem/chat, seja por telefone/skype, etc. E é claro que no mundo digital esse processo de encantamento é sempre muito forte, justamente porque existe toda uma idealização do outro (caso que faz com que vários casais se encontrem na net talvez). E logo depois do primeiro encontro, quando existe a realidade, esse encantamento até aumenta, na espera do próximo encontro e consequentemente na alimentação desse ‘ideal’”.

No texto - que foi catalogado na exposição Ateliê Aberto #3, Casa Tomada, em São Paulo - Paula se refere a um livro “Invenção de Morel” do Adolfo Bioy Casares no qual o narrador está em um ambiente imersivo e busca tanto por ficar invisível que começa a ver coisas que antes era invisível a ele e que este "começar a ver coisas” pode também ser um estado de loucura. Como amiga, ela deve saber o porquê da comparação.

Na crítica do Estadão sobre os filmes apresentados na quinta à noite (um filme do Paraná e outro da Paraíba), observa-se que "'Aquilo Que Fazemos Com Nossas Desgraças' apropria-se de um áudio de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, ao qual Tuoto superpõe imagens que não colheu, mas que transforma em suas”. Juliano Gomes, um dos críticos convidados, chamou a atenção para o fato de o filme iniciar sem os créditos, embora no final conste o nome do autor. 

Tuoto admite que sua assinatura contradiz o conceito, mas afirma que é justamente isso o que o fascina. E não há dúvidas de que realmente é fascinante podermos criar algo novo usando o recurso da apropriação de obras, textos, imagens de outras pessoas.

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